Há trinta anos, a Casa de Acolhimento Residencial (CAR) da Fundação CEBI abria as suas portas a crianças cuja infância tinha sido interrompida por circunstâncias de dor, negligência e desproteção. Hoje, três décadas depois, o seu legado é o de um marco de humanidade e técnica especializada, um espaço onde o acolhimento é entendido não como pausa, mas como ponto de recomeço — um lugar onde cada criança pode reaprender o sentido da segurança e reconstruir o fio da sua história.
A experiência acumulada nestes trinta anos demonstra que acolher é, acima de tudo, um ato terapêutico. A CAR implementa um modelo de intervenção multidimensional, apoiado numa equipa que integra psicólogos, técnicos de serviço social, educadores e profissionais de saúde, unidos por uma visão sistémica e holística. O acolhimento, neste contexto, ultrapassa o mero abrigo físico — é um espaço relacional que oferece previsibilidade, estrutura e afeto, condições essenciais para que a criança possa reorganizar-se internamente após o caos da adversidade.
A História como Terapia
Entre as práticas mais transformadoras desenvolvidas pela CAR encontra-se a metodologia Life Story Work (R. Rose), que devolve à criança o direito de compreender e narrar a sua própria vida. Através dessa metodologia, as crianças reconstroem a sua trajetória, integrando o passado — por vezes fragmentado e doloroso — num enredo que lhes devolve coerência e significado. Este processo de narrativa identitária é, ao mesmo tempo, um gesto de reparação e de empoderamento: ao conhecer a sua história, a criança reencontra o seu lugar no mundo e deixa de ser apenas objeto de decisões institucionais para se tornar sujeito ativo da sua própria existência.
Trabalhar com o trauma na infância exige reconhecer o invisível. As feridas emocionais deixadas por experiências de negligência, abuso ou rejeição são profundas e silenciosas.
A intervenção terapêutica da CAR tem procurado precisamente dar voz a esse silêncio, ensinando às crianças que os comportamentos que hoje as inquietam são respostas de sobrevivência — formas de proteção que outrora lhes salvaram a vida. Com o tempo, estas respostas podem ser substituídas por novas formas de relação e confiança. O vínculo com o cuidador, construído na rotina e na previsibilidade, é o primeiro passo desse caminho de reparação.
Para Além do Acolhimento: Trabalhar a Rede, Reconstruir Famílias
O trabalho da CAR estende-se muito para além das suas paredes. Reconhecendo que cada criança é parte de um sistema mais vasto, a equipa atua em estreita articulação com famílias de origem, escola, CPCJ, tribunais e serviços de saúde. A reunificação familiar, sempre que possível e segura, é uma meta constante — não apenas pela importância do vínculo biológico, mas pela convicção de que nenhuma medida de proteção é verdadeiramente eficaz se não fortalecer a rede natural de suporte da criança.
Quando o regresso à família não é viável, a CAR prepara a transição para uma adoção estável e afetiva. Aqui, novamente, o Life Story Book é essencial: ele torna-se um “passaporte emocional”, um objeto simbólico que a criança leva consigo para a nova família, contendo não apenas memórias, mas a validação da sua história.
Adotar uma criança com consciência do seu passado é, também, adotar a sua verdade — e isso faz toda a diferença na construção de um vínculo seguro.
Portugal, 2025: Entre Desafios e Esperança
Em 2025, o panorama da infância em Portugal é marcado por contrastes. O país envelhece rapidamente, e cada criança representa um bem precioso e escasso. Contudo, a pobreza infantil persiste, atingindo uma em cada cinco crianças, e a negligência continua a ser o principal motivo de intervenção das CPCJ.
O acolhimento residencial ainda predomina sobre o familiar, embora se observe uma lenta e promissora viragem para modelos mais humanizados.
Neste contexto, a CAR da Fundação CEBI representa um exemplo de resposta — uma instituição que alia ciência e afeto, técnica e humanidade. A sua prática demonstra que é possível transformar o acolhimento institucional num espaço de cura, e não de mera contenção. Ao longo de três décadas, a CAR mostrou que o cuidado informado pelo trauma, a escuta ativa e a valorização da história de vida são pilares que verdadeiramente promovem o bem-estar e os direitos das crianças.
Cuidar é Acreditar no Futuro
Celebrar trinta anos é mais do que um marco histórico — é renovar um compromisso ético e social. O compromisso de continuar a defender o direito de cada criança a ser vista, ouvida e cuidada com dignidade.
A experiência da CAR ensina-nos que, quando uma criança é acolhida com respeito e empatia, ela reencontra não só o seu equilíbrio, mas também a sua esperança. E, nesse gesto, a sociedade reencontra o seu próprio humanismo.
A promoção do bem-estar das crianças e jovens não é apenas uma questão de política pública, mas de consciência coletiva. Proteger a infância é investir na possibilidade de um futuro mais justo, mais sensível e mais solidário. Porque cada criança que recupera o direito de sonhar é, em si mesma, um pedaço de futuro tecido com esperança.
TEXTO | Olga Fonseca, Psicóloga e Diretora da área Social da Fundação CEBI